Desafios de uma escola moderna num tempo pós-moderno
O filme “Quanto vale ou é por quilo[1]” (direção de Sérgio Luiz Bianchi) traz, dentre suas abordagens, a noção de que as relações de desigualdades sociais, na atualidade, possuem raízes históricas, cujas práticas eram semelhantes às de hoje, porém com uma “roupagem” moderna.
Isso mostra algumas nuances sobre a estruturação do nosso social muito bem naturalizadas: 1) a sociedade brasileira nunca se desvinculou dos interesses de “lucrar” sobre os mais pobres; 2) não se pratica uma solidariedade desinteressada, mas, o que se pratica é uma espécie de solidariedade individualista; e 3) nossa sociedade não dá espaço para que as camadas menos favorecidas socialmente consigam se estabelecer concretamente em outros patamares sociais. Tais nuances podem ser exemplificadas pelas relações de trabalho presentes no filme – trazendo como referência a cena do “casamento” -, quando um empréstimo concedido para subsidiar a festa repercute um valor bem mais alto: a demanda de um trabalho que acaba sendo executado por uma menina negra, (provavelmente) órfã, que é “alugada” em troca do pagamento da dívida, apesar de não ter nenhuma participação no empréstimo. Como popularmente se costuma dizer, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”.
As aproximações realizadas ao longo do longa ocorrem entre os senhores de escravos e as grandes empresas, versusescravos e trabalhadores de baixa renda. Isso pode ser exemplificado pela relação estabelecida entre o personagem Marco Aurélio e sua empregada, uma senhora pobre, iletrada, com limitações físicas. Essa senhora, por ser analfabeta, acaba por ser explorada por seu patrão, usada como “laranja” nas tramas de desvios de verbas públicas.
O uso desenfreado do dinheiro da máquina pública associado ao mau uso por parte de empresários corruptos sob o pseudônimo da caridade têm efeitos surpreendentes na sociedade, seja no confronto da escravatura, onde “capitães do mato” tinham a missão de capturar escravos e com isso trabalhavam a favor do governo e pela ordem da sociedade dominante da época, seja em festas atuais patrocinadas por socialites que lavam dinheiro de empresas fantasmas colocando computadores superfaturados em favelas, sem qualquer preparo e estrutura socioeducativa.
As mortes decorrentes da violência são só a ponta do iceberg de um sistema cheio de tentáculos e difícil de captar já que a parte dominante sempre estabelece a sua permanência e status quo de posição superior. O oportunismo desenfreado, e a alusão à sociedade de consumo, onde se mata por um telefone, etc e ( no caso do filme) por uma “tintura de cabelo”, realça o contraste da falta de igualdade e oportunidade justa para todos. No filme, poucos são inocentes já que mesmo o mais puro dos sujeitos acaba por se corromper diante da oferta fácil de dinheiro, inquestionável quanto à sua procedência.Em suma, o que se pode inferir é que em “Quanto vale ou é por quilo?”, vence o mais forte, e aqueles que se recusam a “aceitar” tal sistema, são perseguidos e castigados, da mesma forma que acontecia no período escravista, na relação capitão-do-mato e escravo fugitivo.
Ao olharmos para a sociedade sob o ponto de vista do filme, e para escola, como a concebemos atualmente, vemos que essa reflete a mesma relação de poder que aparece no longa. Tais relações de poder que permeiam a escola também têm origens históricas, e obviamente, não são neutras. A escola de hoje está alicerçada nos ideais de outro tempo que não está tão longe de nós assim: os ideais da Modernidade. Esses ideais foram postos em prática a partir das concepções de sociedade que entraram em voga no “século das luzes”, de desde então, cabe à escola o papel de formar as novas gerações para uma nova sociedade. Porém, essas “novas” gerações continuam vivendo à margem dessa “nova” sociedade, quando se considera, por exemplo, os preceitos de igualdade e de liberdade tão apreciados pelos iluministas. Não somos iguais, as relações socias não são iguais, sequer somos livres...
Para Georgen (apud MISSIO; CUNHA, ___), a Modernidade pode ser caracterizada como uma sobreposição da razão [em especial, da científica] à naturalidade humana. (GEORGEN, 2001, p. 12-13). Para “ajudar” a humanidade nesse processo de tornar-se moderna, a escola surge como um dos elementos capazes de contribuir para a formação dessa nova mentalidade, pois era nela e por intermédio dela que o saber científico era popularizado, ao menos até o surgimento e a expansão das diferentes mídias, no século XX. Desse modo, a partir de Bauman (2001), podemos ver que essa forma de Modernidade poderia ser comparada a uma espécie de sólido, referindo-se à forma como as sociedades foram moldadas, sendo necessário que esse “sólido” seja derretido, para que a Modernidade possa ganhar novos sentidos.
Olhando, a partir de tal perspectiva, para os comparativos entre escravidão e ações sociais do filme “Quanto vale ou é por quilo?”, percebemos aquilo que Bauman (2001) denominou como sólido: o que mudaram foram as aparências, as tecnologias e as práticas; porém, a “essência[2]” de certas práticas continua fundamentada em princípios de escravidão, de exploração e de segregação.
Outro aspecto importante a ser destacado é o modo como se constituem as relações sociais nesse contexto a que podemos chamar de “pós-moderno”: nossa sociedade tem vivido intensas modificações políticas, sociais e econômicas, o que desloca um eixo importante nos modos de se compreender: passa-se a olhar pra si, ao invés de se considerar os outros. Dessa forma, o controle das nossas ações não é mais externo (governo, polícia, o próximo), mas somos nós mesmos (o medo de perdermos o emprego, o receio de sairmos e sermos assaltados, o pensar nas consequências de nossas ações)... trazendo do contexto do filme, reflete as lutas travadas por igualdade social, no exemplo da personagem que buscava melhores condições para sua comunidade, que reflete tensões de todos os lados da sociedade brasileira. Porém, alguns pilares – como o do poder na mão dos economicamente mais abastados – se mantém e não possibilita novos jeitos de incluir socialmente.
A escola, por sua vez, pode ser considerada por muitos uma instituição defasada, mas ainda ela é uma das principais mantenedoras da Modernidade, seja sólida ou líquida. A escola ainda divulga a ciência e o saber como as “fontes” da salvação humana, como as formas de alcançar a felicidade. Essa escola internaliza a Modernidade em nós, e a faz isso tão bem que nos passa a ideia de que sermos modernos é uma essência. Tornar líquida essa essência é o desafio não só da escola, mas da humanidade pois enquanto a escola não se reinventar, a sociedade não se reinventará.
Os autores dão pistas, ao longo do texto, sobre como a instituição escolar constrói e mantém essa Modernidade:
Com o entendimento da escola como uma construção da Modernidade, que impõem um único modelo da Cultura, privilegiando uma forma particular de civilização, com um indivíduo emancipado, porém conformado com as imposições do Estado Percebemos que as instituições educativas realizam um trabalho o qual visa o controle, tornar dócil a consciência, isto é, almejam um indivíduo normalizado. (MISSIO; CUNHA, ___)
A escola é, então, o lugar da norma. A grande “fábrica” de seres modernos. A escola moderna acomoda os sujeitos numa cultura “letrada”, mesmo que o faça isso à força, e sob as mais variadas formas de violência mental. “A Escola Contemporânea funciona [...] transmitindo informações, que são prontas e moldadas, o que não incentiva a criação e a reflexão sobre a realidade.” (MISSIO; CUNHA, ___).
Por pós-moderno, entendo o conjunto de movimentos que busca desconstruir as noções herdadas pela Modernidade, desde os modelos “prontos” até às formas de julgamento modernas (que sempre estão vinculadas a noções binárias: bom em oposição a mau; pode em oposição a não pode...), e aí está um dos motivos pelos quais a escola, hoje, está em processo de defasagem: a mantenedora da Modernidade compete com a posição pós-moderna que a sociedade vem, aos poucos, produzindo. Embora algumas essências modernas ainda prevaleçam – e não estou querendo afirmar com isso que tais posições sejam boas ou não –, gradativamente, as formas de compreender o mundo e a realidade vão sendo deslocadas. O que o texto dos autores também aponta é para o fato de que a crise da escola se dá pelo motivo de ela ainda ser moderna numa sociedade de fortes tendências pós-modernas. É isso que gera o grande conflito na instituição escola: o “serviço” a que ela tem se prestado – o de transmitir o conhecimento científico – hoje não é autonomia da escola.
Concluindo, escola perdeu o domínio da informação, e precisará se reinventar como orientadora, mediadora de informações; terá que admitir que não há apenas uma Cultura (com c maiúsculo), e uma forma de ver a realidade; terá que contribuir para o agora, além do amanhã. Essa é a nova exigência da escola pós-moderna: reinventar-se para formar não as futuras, mas as presentes gerações.